Elementos para o debate e definição da 4a Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres em 2015
No 8º Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, que se realizou em 2011 nas Filipinas, avançamos no debate sobre o contexto socio-econômico-político mundial e os desafios que nós enfrentamos como movimento feminista anti-capitalista e anti-patriarcal enraizado nos grupos de base. Algumas Coordenações Nacionais enviaram complementações e sugestões que enriqueceram o texto elaborado pelo Comitê Internacional. Consideramos que essa análise continua atual e que as tendências apontadas em 2011 se mantêm[1].
Por esse motivo, neste texto – que é uma contribuição para o debate das Coordenações Nacionais no processo preparatório ao 9º Encontro Internacional que será realizado no Brasil – escolhemos centrar nossa análise sobre as bases do patriarcado e do capitalismo como sistemas que se retroalimentam, ainda mais com a crise que vive o capitalismo e suas falsas soluções. O que nos orienta são as alternativas que afirmamos e que estamos construindo, e por isso iniciamos o texto com elas. A partir disso, esperamos contribuir para sintetizar um enfoque orientador de nossas ações e alianças futuras, sem perder de vista as sínteses que elaboramos coletivamente na Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade [2] e os textos dos quatro campos de ação[3].
As mulheres em resistência construindo alternativas
Nós da Marcha Mundial das Mulheres, em conjunto com nossas organizações aliadas, fazemos parte de um mesmo movimento mundial de resistência ao sistema capitalista, colonialista e patriarcal, e de construção de propostas alternativas, fundamentadas na autonomia e na autodeterminação das mulheres e dos povos.
A partir do feminismo, defendemos a sustentabilidade da vida humana como fio condutor desse novo paradigma, que deve se basear em uma relação dinâmica e harmônica entre a humanidade e a natureza e entre os seres humanos. Para isso, são indispensáveis mudanças reais no modo de produção e reprodução e nos padrões de consumo, que ressignifiquem e ampliem o conceito de trabalho, reconheçam o trabalho das mulheres e estabeleçam outro equilíbrio entre as tarefas de produção e reprodução, onde estas últimas sejam compartilhadas também com os homens e com o Estado.
Ao mesmo tempo, afirmamos o direito à autonomia sobre nossos corpos e nossa sexualidade, o direito de separar a sexualidade da maternidade e a decidir sobre se queremos ser mães e quando. Reafirmamos nossa visão de que a sexualidade é construída socialmente e somos sujeitos ativos no rechaço à heteronormatividade[4] e a defesa do livre exercício da sexualidade sem coerção, estereótipos e relações de poder.
Desde nosso cotidiano, nós mulheres criamos alternativas concretas à economia dominante. Com nosso trabalho e conhecimento histórico, desenvolvemos em distintas partes do mundo um grande número de experiências alternativas de gestão da vida, como a agroecologia e a economia solidária. Afirmamos que a soberania alimentar é estratégica para a transformação da sociedade, porque orienta outra forma de organização da produção, distribuição e consumo de alimentos, em oposição à lógica capitalista do agronegócio.
Reivindicamos uma profunda democratização do Estado que implique romper com os privilégios da classe dominante, que gere ações de despatriarcalização[5], e que garanta o sentido público do Estado, com ações emancipatórias construídas com base na soberania e na participação popular. Isso implica, também, um papel ativo dos Estados no âmbito internacional, que promova políticas de integração entre os povos, que se baseiem nos princípios de solidariedade, reciprocidade e redistribuição, em oposição à lógica imperialista e colonialista da exploração.
Nossa defesa da desmilitarização articula essas dimensões e questiona o papel da elite do poder econômico nas intervenções militares realizadas pelos Estados, que em todo mundo resultam no controle de territórios com riquezas naturais.
Lutamos pelo direito à comunicação e a democratização dos meios de comunicação, que passa por garantir a liberdade dos fluxos de informação, a infraestrutura das comunicações e da internet, por tanto, combatendo a lógica mercantil da propriedade intelectual.
Nossa luta feminista é por outro modelo que garanta o direito das mulheres a uma vida livre e sem violência, gere justiça social e igualdade entre mulheres e homens, incentive a solidariedade entre as pessoas e que seja sustentável. Por isso entendemos que as alianças das mulheres com outros movimentos sociais são essenciais para fortalecer nossa resistência e avançar para a superação de uma só vez do patriarcado e do capitalismo.
Uma das falsas soluções do capitalismo a suas crises: tornar o patriarcado mais forte
Em 2000, na Carta aos e as dirigentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial descrevemos as causas estruturais da pobreza e das violências: “Para a Marcha, o mundo de hoje e a situação das mulheres em particular se explicar pela força conjugada de dois fenômenos globais:
- A dominação de um sistema econômico único que abarca todo o globo: o capitalismo neoliberal, esse sistema único, dominante, que se rege pela competição absoluta e se orienta em todas as direções pela privatização, a liberalização, a desregulamentação, submetido só à lei da “supremacia dos mercados”, onde o desfrute pleno dos direitos humanos fundamentais está subordinado à liberdade econômica que provoca exclusões intoleráveis para pessoas e perigos para a paz no mundo e para o futuro do planeta.
- A perpetuação de um sistema social, político e econômico dominante contra as mulheres: o sistema patriarcal, um sistema que não data do século XX mas que vem se consolidando há milênios segundo uma intensidade variável e culturas diferentes. Este sistema de valores, regras, normas, políticas, se baseia na pretensão de que existe uma inferioridade natural das mulheres como seres humanos e na hierarquização dos papeis que nossa sociedade atribui às mulheres e aos homens. Este sistema consagra o poder masculino, engendra violências e exclusões e imprime à mundialização atual um viés extremamente sexista.
Estas duas forças históricas se alimentam reciprocamente e se fortalecem mutuamente para manter a grande maioria de mulheres em uma situação de inferioridade cultural, desvalorização social, marginalidade econômica, invisibilidade de sua existência e seu trabalho, mercantilização de seus corpos.”[6]
Desde então convivem na Marcha perspectivas analíticas que tratam o patriarcado e o capitalismo como dois sistemas ou como um só sistema – o patriarcado capitalista ou o capitalismo patriarcal. Temos em comum o esforço de tornar visível como a opressão das mulheres – o patriarcado – é constitutivo das relações econômicas, sociais, culturais, que cimentam a atual ordem social. Um exemplo é a exploração do trabalho das mulheres nas maquilas, onde as habilidades desenvolvidas na socialização de gênero feminino como a paciência ou a destreza são utilizadas sem reconhecimento nem melhor remuneração. Ou quando o assédio sexual é utilizado como método gerencial de humilhação e controle das trabalhadoras.
Assim, desde nossa origem no final dos anos 1990, no contexto de auge do pensamento único neoliberal, de imposição de políticas de “ajuste estrutural” (privatizações, redução da intervenção do Estado na economia, abertura de mercados, redução dos gastos sociais), tratamos não apenas de olhar para os impactos da globalização sobre as mulheres, mas, a partir da experiência concreta e sobretudo da resistência cotidiana e criativa das mesmas, nos atrevemos a falar de alternativas, de outras formas de organizar a vida. Identificamos nas políticas do FMI e do Banco Mundial novas formas de colonialismo, mas ainda precisamos desenvolver na MMM uma compreensão que articule os sistemas patriarcal e capitalista com o racismo e o neocolonialismo.
Hoje nos enfrentamos a uma forte reestruturação do sistema para manter a ordem de opressão e exploração que evidencia e amplia os mesmos mecanismos violentos de acumulação que estavam em sua origem e que podemos sintetizar em quatro processos: a) o acaparamento da natureza; b) a apropriação da renda e dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores; c) o controle sobre o corpo e a vida das mulheres[7]; d) a militarização, a criminalização e a violência.
Neste processo atual de acumulação, conhecido como “acumulação por despossessão”[8], tudo se transforma em mercadoria – água, ar, florestas, sementes, serviços como educação e saúde. A desigualdade e a concentração de riqueza aumentam e quem paga os custos da crise do capital são os setores pobres e médios da sociedades. Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), em 2009, ano de agudização da crise, enquanto o desemprego cresceu 10% a mais em relação a 2007, os ricos (aqueles com mais de um milhão de dólares para investimento) aumentaram sua riqueza total em 18%[9]).
a) O acaparamento da natureza[10]
Ao longo dos anos 2000, vivemos a expansão das relações de mercado a mais dimensões da vida humana. O processo permanente de cercamento das terras, que separa os e as trabalhadoras dos meios que garantem sua produção e sobrevivência, se ampliou. Como forma de controlar nossas vidas e criar dependência, o capital impõe a tecnologia dos transgênicos que, na prática, busca impedir os seres humanos de cultivarem seu próprio alimento por meio da limitação da capacidade reprodutiva das sementes (transgênicos terminator, que produzem uma só vez) e da obrigação de pagar royalties[11] às corporações transnacionais sobre as sementes, que por milênios são bens comuns da humanidade.
A natureza é tratada como um recurso inesgotável, utilizado na produção de mercadorias que alimenta o sobreconsumo de uma parte da população. Consumo que é estimulado pela estratégia insana da obsolescência programada[12], que tem como único objetivo manter a venda constante de produtos que logo param de funcionar ou se tornam ultrapassados pelas novas tecnologias.
Essa mercantilização da natureza se intensifica pela busca, por parte dos mercados financeiros especulativos, de ativos reais (terra, água, minerais) para manter a confiança no sistema e se sustentar. Foi isso que gerou novas crises do sistema: crise ambiental, climática, econômica, política. A crise do preço dos alimentos em 2007-2008, por exemplo, foi provocada pela especulação financeira e o direcionamento de capitais voláteis para o investimento em terras, ações e na bolsa de mercados futuros. O acaparamento de terras se expandiu sobretudo na África, Ásia e América Latina para o monocultivo de alimentos ou de agrocombustíveis para exportação. As áreas urbanas passaram por um novo ciclo de especulação imobiliária, inclusive com a construção de grandes obras relacionadas a megaeventos. As companhias mineradoras ampliam as áreas de prospecção e mineração a céu aberto. Seguem provocando a contaminação da água, superexplorando o trabalho e estão no coração dos conflitos armados.
b) A apropriação da renda e dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores
Séculos de luta das e dos trabalhadores resultaram no estabelecimento de direitos que impõem limites – ainda que insuficientes – à exploração do capital, como por exemplo: o direito ao descanso semanal e anual, o número de horas de trabalho e licença em caso de doenças, direito à pensão remunerada, acesso a serviços públicos de educação, saúde, transporte, etc.
Mas hoje em dia, frente à “crise”, o sistema está operando um grande ajuste na relação capital/trabalho com o recorte de gastos públicos em todos os setores de prestação de serviços à população e com a imposição generalizada de um grau de precariedade para todas e todos, antes circunscrito aos países do Sul geopolítico (os mais pobres) ou a setores da população (mulheres e imigrantes, principalmente). O desemprego e a ameaça do desemprego são utilizados pelas forças que operam o sistema para que tais recortes aos direitos dos e das trabalhadoras sejam aceitos sem muita resistência. E quando há resistência, as mesmas são ocultadas ou menosprezadas.
A transferência de custos da produção capitalista às mulheres e ao trabalho reprodutivo que realizam é parte deste ajuste. O trabalho reprodutivo é o trabalho de cuidar dos demais, a preparação dos alimentos, a limpeza, etc., que é realizado majoritariamente no espaço doméstico e pelas mulheres. As mulheres são gestoras da precariedade em suas casas. Assim, na maior parte dos casos, são elas que se ocupam de cuidar das pessoas quando o número de leitos nos hospitais é reduzido ou os hospitais fecham, quando os centros de educação infantil fecham ou não oferecem alimentação escolar.
O trabalho das mulheres é a variável de ajuste entre as lógicas e tempos contraditórios do mercado movido pelos lucros e do cuidado da vida humana. Em que pese a sobrecarga de trabalho e a disponibilidade permanente de inúmeras mulheres, há uma crise do cuidado e da forma como a sociedade responde às necessidades básicas das pessoas de se alimentar, compartilhar afetos, se sentirem seguras[13]. A deslocalização da produção de mercadorias se combina a uma deslocalização do trabalho de cuidados com um enorme contingente de mulheres do sul e de áreas mais pobres migrando para o norte ou áreas mais ricas para cuidar das crianças, velhos e doentes, enquanto ninguém cuida delas.
Em países em que a repressão à luta por direitos é ainda mais forte, as condições de trabalho são ainda mais dramáticas, o que se evidencia em episódios como o incêndio e desmoronamento das oficinas de costura em Dhaka, Bangladesh, em 24 de abril de 2013, tirando a vida de 1.127 pessoas, em sua maioria mulheres.
c) O controle sobre o corpo e a vida das mulheres
O patriarcado combinado ao capitalismo não se apropria somente do trabalho das mulheres, mas também da própria origem da sua capacidade de trabalho, ou seja, dos seus corpos. No período inicial do capitalismo (a acumulação primitiva), não apenas a divisão sexual do trabalho foi instrumentalizada, mas também a sexualidade, instituindo o casamento heterossexual e a maternidade como norma, às vezes promovendo a prostituição, outras vezes condenando as mulheres na prostituição e perseguindo as mulheres que tinham conhecimento sobre métodos contraceptivos[14].
A economia de mercado da exploração do trabalho não remunerado das mulheres corresponde a uma sociedade de mercado que pressupõe a organização dos e das trabalhadoras em famílias nucleares. Podemos comprovar que nas últimas duas décadas houve um aumento contínuo do conservadorismo, que valoriza o papel das mulheres na família para justificar sua sobrecarga de trabalho e sua responsabilidade frente ao corte das políticas públicas de apoio à reprodução social (em países onde elas existiam) ou para impedir a aprovação de tais políticas. Ao mesmo tempo, há uma crescente pressão para que as mulheres saiam do mercado de trabalho como forma de diminuir as taxas de desemprego. Entre os mecanismos utilizados está a oferta dos salários mais baixos para as mulheres, a imposição do corte aos serviços públicos que resultam tanto no maior desemprego de mulheres (que são a maioria no setor público) como em mais tarefas de cuidados assumidas por elas sem custos para o Estado ou para o setor privado.
O controle do corpo das mulheres é mais complexo hoje, quando imagens opostas do corpo, coberto por uma burca ou do corpo nu podem ter o mesmo sentido opressor. É o “corpo para si” ou o corpo para o desejo do outro, geralmente o “outro” masculino? Ou quando o discurso feminista sobre a autonomia das mulheres – traduzido no lema histórico “meu corpo me pertence” – é cooptado pelo sistema e convertido em “meu corpo é meu negócio” (“my body is my business”), em uma clara transformação do corpo em coisa, em objeto que pode ser comercializado. Além disso, o aumento da influência das instituições religiosas, sejam elas católicas, evangélicas ou islâmicas, na regulamentação da vida pública está produzindo a não aprovação ou o retrocesso nos direitos relacionados à autonomia das mulheres, à sua vida afetiva e reprodutiva. Ao mesmo tempo, em alguns países, graças à luta dos movimentos LGBT, legaliza-se o casamento de casais do mesmo sexo, se estabelecem direitos de adoção, de herança, etc., mas com enfrentamento de uma forte resistência dos setores conservadores que aumentam a agressividade contra lésbicas, gays e trans. Por exemplo, na França, os setores religiosos conservadores organizam várias manifestações contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e contra adoção por casais homossexuais. Mais recentemente, na Nigéria, foi apresentada uma lei condenando a homossexualidade como se fosse um crime.
d) A militarização, a criminalização e a violência
Em sua análise da fase imperialista do capital no começo do século XX, Rosa Luxemburgo aponta que o complexo industrial-militar é, em princípio, capaz de expansão infinita, já que é o próprio capital que controla o ritmo de sua produção por meio de ações legislativas ou pelos meios de comunicação, manipulando a chamada opinião pública[15]. Passado um século de guerras tirando vidas e esforços de reconstrução, o capital em crise estrutural e com produção descendente é ainda mais inseparável de um aumento constante da indústria armamentista associada a uma expansão militarista.
As vendas da indústria de armas em 2011 foram de 410 bilhões de dólares, cerca de 60% dos quais foram para 44 empresas com sede nos Estados Unidos e 29% por 30 empresas com sede na Europa Ocidental. Frente a uma pequena redução nas vendas, as empresas já iniciam estratégias de deslocamento para a América Latina, Oriente Médio e Ásia e para adentrar o mercado de cibersegurança (cybersecurity)[16]. Ou seja, são desenvolvidas tecnologias de controle da sociedade com a ilusão de maior segurança. O militarismo não se reduz à sua dimensão econômica, mas se estende à imposição de valores militares (crença na hierarquia, obediência, resolução de conflitos pela força) a toda a sociedade. Esses valores são claramente patriarcais e suas expressões mais agudas são a utilização da violência sexual ou o crescimento da prostituição, inclusive de crianças, associadas à presença militar.
O controle da sociedade também se manifesta pelo aumento da criminalização das lutas sociais, traduzido muitas vezes na distorção dos instrumentos que criamos em defesa da justiça, memória e respeito aos direitos. Exemplos disto são as reações dos militares de Guatemala em resposta ao julgamento do ditador Ríos Montt, responsável pelo genocídio e pela violência sexual contra o povo Ixil. Eles têm acusado ativistas históricas de “terroristas”, seja por vias judiciais, seja incitando parte da população contra elas, em um processo de negação da defesa dos direitos humanos.
Contra as mulheres, soma-se a violência patriarcal. Sabemos que a violência contra as mulheres é uma ferramenta de controle de nossas vidas e nossos corpos. Esta violência tem ganhado visibilidade no último período, sobretudo a violência sexual cometida no espaço público, e tem mobilizado a reação das mulheres e também os homens. Os últimos anos foram marcados por imagens da polícia egípcia arrastando uma ativista e pelo relato de estupro coletivo seguido de morte de uma jovem índia. Nestes casos, os grandes veículos de comunicação hegemônicos apresentam explicações culturalistas e com muito pouca reflexão sobre as causas estruturais desta violência. Nas poucas análises compartilhadas sobre o tema[17], se falou de como a conquista das mulheres de maior espaço na vida pública com um enorme esforço pessoal e coletivo provoca uma reação da ordem patriarcal extremamente violenta. Apesar do desemprego das mulheres ser ainda maior que o dos homens na maior parte do mundo, as mulheres ainda são acusadas de “roubar” o emprego dos homens da mesma maneira como no início da revolução industrial.
Despolitização e controle da informação
A violenta ofensiva do sistema para reposicionar e aumentar sua acumulação se complementa com o esvaziamento dos espaços de negociação política. Já não é necessário que o Fundo Monetário Internacional (FMI) venha com suas missões aos países para impor aos governantes suas políticas; agora são seus antigos dirigentes (do Banco Mundial, do Banco Central Europeu), que ocupam os cargos executivos, criando a figura do ditador tecnocrata. As corporações transnacionais controlam as Nações Unidas e impõem suas agendas e termos de negociação para conferir um verniz de legitimidade a suas falsas soluções. Enquanto o capitalismo individualiza e fragmenta, as religiões são apresentadas como capazes de criar solidariedade. Com esta retórica, as instituições religiosas também se legitimam como instituições supostamente democráticas, impondo suas visões particularizadas a todas as pessoas, como é o caso da Igreja Católica, que impõe a criminalização do aborto a inúmeros Estados, ou governos de caráter islâmico, que propõem a sharia (a lei islâmica) como base para Constituições de Estados.
Mais uma vez, algumas feministas e demandas de grupos de mulheres são utilizadas e distorcidas pelos que detêm o poder para promover uma agenda contrária às reivindicações das mulheres, o que enfraquece nossas estratégias. Por exemplo, o discurso em torno da conciliação entre trabalho e cuidado da família é dirigido especialmente às mulheres e é utilizado para empurra-las a aceitar a redução de horas de trabalho remuneradas e, ao mesmo tempo, fazer retroceder nossa luta pela superação da divisão sexual do trabalho.
É importante também criticar atitudes de alguns movimentos sociais que incrementam a subordinação das mulheres. Por exemplo: ações que reforçam a coisificação dos corpos das mulheres, fazem homenagens a Margaret Thatcher, conhecida como neoliberal e fascista, acessam recursos da Fundação Bill Gates e outros similares, reconhecidos por financiar atividades anti-sindicalistas, ou apoiam posições racistas disfarçadas de ações de libertação das mulheres.
A ofensiva do sistema conta ainda com o reforço dos meios de comunicação de massa (rádio, televisão e jornais de grande circulação), controlados atualmente por cinco conglomerados mundiais ou, em nível nacional, por algumas famílias. Por meio do controle do que e como se divulga e do que se mantém oculto, os mesmos cumprem um papel decisivo na formação da opinião pública em direção à aceitação de ideias e valores conservadores ou de políticas de austeridade, por exemplo, e da criminalização dos movimentos sociais. Neste cenário, são reprimidos os que tentam disputar as ideias (através das rádios comunitárias ou blogs) e há cada vez mais iniciativas de controle sobre a infraestrutura e os fluxos de informação no espaço da Internet (dos correios eletrônicos às redes sociais).
Nossas reações diante da ofensiva do capitalismo
Frente ao aumento da militarização e do controle dos territórios, dos direitos e do corpo das mulheres existe um grande número de lutas de resistência coletiva. Vimos isso, por exemplo, nos temas trabalhados pelas várias Coordenações Nacionais nas 24 Horas de Ação Feminista pelo Mundo, em 10 de dezembro de 2012: defesa dos territórios e da maneira de viver nas comunidades; defesa do direito ao aborto e da saúde pública; o enfrentamento da violência contra as mulheres.
A defesa dos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores na Europa e nos Estados Unidos tem se transformado em outras formas de luta como resposta ao sistema em sua totalidade. As greves de trabalhadoras e trabalhadores como nas áreas de mineração da Tunisia, ou das operárias têxteis de Mahala al Kubra, no Egito, foram o prenúncio das insurreições populares da chamada “Primavera Árabe”. Nós mulheres recuperamos nossos territórios: desafiamos as proibições dos jihadistas no norte do Mali e fomos vender frutas e legumes, desafiamos a polícia do primeiro ministro Erdogan na Turquia em uma luta que começou com mães e professoras protestando contra a transformação de um parque em Istambul em um shopping, construído com estilo de quartel otomano. Protesto esse que se amplia ao território corpo: muitas mulheres denunciam que a nova lei do aborto é um sinal da política de Erdogan, que recomenda às mulheres turcas terem três filhos.
Nós mulheres estamos liderando resistências pacíficas contra as companhias mineradoras em diferentes territórios do mundo, enfrentando a polícia em manifestações e ataques constantes à nossa organização e às nossas denúncias. Nós mulheres estamos construindo e visibilizando as formas cotidianas de resistência. Estamos propondo mudanças constitucionais e contribuindo aos processos de paz. Estamos desenvolvendo nossos próprios meios de comunicação – incluindo aqueles considerados não convencionais, como as “batucadas” e o teatro do oprimido - e construindo nossos conteúdos e informações sobre a realidade[18].
Todas estas ações de resistência e construção de alternativas se baseiam em uma análise dos sistemas de opressão e dos efeitos que os mesmos têm sobre nossas vidas. A seguir propomos questões que podem estimular o debate entre todas e ajudar nas intervenções que as delegadas nacionais farão durante o Encontro Internacional. Aquelas Coordenações Nacionais que por alguma razão não puderem participar do Encontro, se desejarem, podem nos enviar suas contribuições por escrito até 31 de julho.
1) Na MMM buscamos evidenciar as causas da injustiça e da opressão que as mulheres enfrentam em um mundo estruturado pelo patriarcado e pelo capitalismo. O racismo e o colonialismo também são sistemas que estruturam a opressão dos povos originários e de pessoas não-brancas, naturalizando o acaparamento de suas terras, a super-exploração do trabalho, reforçando o preconceito e as agressões. Como avançar em nossa análise das interconexões entre o patriarcado, o capitalismo, o racismo e o colonialismo? Que consequências esses elementos trazem na definição de nossas demandas e ações?
2) Como o processo de acaparamento se apresenta nos territórios em que vivemos e que lutas precisamos fazer para fortalecer o controle das mulheres sobre seus territórios e acabar com essa forma de expropriação?
3) A luta pela igualdade passa necessariamente pelo questionamento à divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres. Como fazer esse debate sem cair na armadilha de estabelecer mecanismos que terminem por consolidar as responsabilidades domésticas e de cuidados exclusivamente sobre as mulheres?
4) Por décadas, os avanços tecnológicos (por exemplo, a mecanização no campo, de processos produtivos na indústria ou a adoção do computador pessoal), foram vendidos com a promessa de mais tempo livre para as e os trabalhadores. Mas o resultado de tais avanços foi mais lucro para os proprietários dos meios de produção e a intensificação da exploração (com uma única trabalhadora assumindo tarefas antes realizadas por mais de uma trabalhadora). Quais são as propostas que nós mulheres temos para construir formas alternativas de organizar o tempo, distintas da lógica do sistema capitalista?
5) Percebemos o avanço das corporações transnacionais em todas as dimensões da economia, mas também na construção de subjetividades e na captura dos espaços políticos, que passam a operar para favorecer seus interesses. É possível identificar uma maior presença das transnacionais em seu país ou região? Em torno de quais setores da economia e com quais efeitos na vida das mulheres? A Coordenação Nacional da MMM participa de ações concretas sobre as transnacionais?
6) Frente ao que foi exposto, vemos que o feminismo, como teoria, prática e movimento organizado, se transformou em alvo a ser atacado pelo sistema capitalista e patriarcal, que tenta banalizar, fragmentar e ressignificar o feminismo de forma superficial. Esse processo se passa em sua luta local? Como?
7) Em nossa ação em 2000, denunciávamos a circulação monetária global sem restrições e cada vez mais desvinculada da economia real, nos somando à reinvindicação de taxação sobre as transações financeiras (tais como a Taxa Tobin), sobre as grandes riquezas e pelo fim dos paraísos fiscais. Em 2005, com a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, apresentamos a nossa visão de como deveria ser organizado o mundo alternativo ao capitalismo. Em 2010, nos mobilizamos para denunciar o aumento da violência contra as mulheres através da militarização e da repressão armada ou judicial aos movimentos organizados, assim como da persistência da violência doméstica. Que lutas (temas e tipos de ação) devemos fazer na ação de 2015 para enfrentar estes novos mecanismos de controle do corpo, do tempo e vida das mulheres?
8) A solidariedade internacional é um componente forte de nossa construção como movimento internacional. Como podemos tornar nossas ações de solidariedade mais efetivas, seja em relação às mulheres de países que vivem em conflito (como Palestina, Sahara Ocidental, República Democrática do Congo, Mali, República Centro Africana, entre outros), seja em países onde se busca garantir direitos?
9) A comunicação é parte fundamental da nossa mobilização e de nossa organização, nos permite fazer o debate de idéias entre nós e diretamente com a sociedade e aumentas nossas forças. Como sua Coordenação Nacional trabalha a produção de discursos e comunicação próprias (boletins, páginas na internet, listas de comunicação, audiovisuais)? A luta pela democratização dos meios de comunicação é parte da agenda da sua Coordenação Nacional?
[1] Documento disponível em http://www.marchemondiale.org/structure/8rencontre/context/es
[2] Disponível em http://www.marchemondiale.org/qui_nous_sommes/charte/es
[3] Disponível em http://www.marchemondiale.org/actions/2010action/text/es
[4] Termo usado para descrever situações nas quais orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, credos ou políticas. Esse conceito parte da crítica à imposição da heterossexualidade obrigatória como norma na sociedade até questionar a identidade de gênero e os papéis sexuais de forma binária entre macho e fêmea.
[5] Proposta das feministas bolivianas nos marcos do governo popular de Evo Morales para a transformação das estruturas, práticas cotidianas e discursos que perpetuam e reproduzem as relações de poder que subordinam às mulheres.
[6] Marcha Mundial de las Mujeres 1998-2008 : una década de lucha internacional feminista. São Paulo : SOF - Sempreviva Organização Feminista, 2008, p. 66. Disponível em espanhol no link: http://www.marchemondiale.org/publications/libro1998-2008/part02/es
[7] A ecofeminista Ariel Saleh afirma que o capitalismo é construído sobre uma dívida social ao explorar os trabalhadores, uma dívida corporificada com as mulheres pelo trabalho reprodutivo não remunerado que realizam, uma dívida ecológica com camponeses e indígenas pela apropriação de suas terras e meios de vida. (Ariel Salleh: Rio+20 and the Green Economy: Technocrats, Meta-industrial, WSF and Occupy, March 31, 2012). “Capitalism is built on a social debt to exploited workers; an embodied debt to unpaid women for their reproductive labor; and an ecological debt to peasants and indigenes for appropriating their land and livelihood.” Disponível em inglês: http://www.zcommunications.org/rio-20-and-the-green-economy-technocrats-meta-industrials-wsf-and-occupy-by-ariel-salleh
[8] A acumulação por despossessão é um conceito formulado pelo teórico marxista David Harvey que consiste no uso de métodos da acumulação primitiva para manter o o sistema capitalista, mercantilizando âmbitos que até então o mercado não tinha acesso. Enquanto a acumulação primitiva supunha a implantação de um novo sistema que substituiu o feudalismo, a acumulação por despossessão tem por objetivo manter o sistema atual, repercutindo nos setores empobrecidos pela crise de sobre-acumulação do capital
[9] Documento da II Conferencia Internacional: Visión política de los trabajadores sobre el desarrollo. Argentina, abril de 2013.
[10] Acaparamento ou açambarcamento é uma forma de monopólio e controle privado dos territórios.
[11] Valor que se paga pela utilização de algo (livro, obra de arte, patente, marca etc.)
[12] Obsolescência programada é quando a empresa capitalista desenvolve, fabrica e distribui um produto para consumo que logo se torna obsoleto ou não funcional, para forçar os e as consumidoras a comprar a nova geração do produto, como é muito comum nos produtos eletrônicos.
[13] Amaia Pérez Orozco: Ameaça tormenta: a crise do cuidado e a reorganização do sistema econômico.
[14] Silvia Frederici: Calibán y la bruja, Mujeres, cuerpo y acumulación originaria. Traficantes del sueño, 2011. Disponível em espanhol em: http://www.traficantes.net/index.php/content/download/24695/236104/file/Caliban_y_la_bruja.pdf
[15] Rosa de Luxemburgo: The Accumulation of Capital. Londres, Routledge, 1963, p.466
[17] Vandana Shiva: The connection between global economic policy and violence against women. Disponível em inglês em: http://www.forum.awid.org/forum12/2013/01/violent-economic-reforms-and-the-growing-violence-against-women/
[18] O debate sobre comunicação feito no âmbito do Comitê Internacional da MMM em 2011 está disponível em espanhol: http://www.marchemondiale.org/structure/8rencontre/communication/es
Last modified 2014-03-28 06:20 PM